O Regicídio visto por D. Manuel II
(I)
A 1 de Fevereiro de 1908, no
regresso de mais uma estadia em Vila Viçosa, o rei D. Carlos e o princípe
herdeiro D. Luís Filipe, são assassinados em pleno Terreiro do Paço. De um só
golpe, Costa e Buiça, decapitavam a monarquia portuguesa, deixando o trono nas
mãos de um pouco preparado D. Manuel, sem capacidade nem margem de manobra para
gerir uma situação política explosiva que culminaria com a queda da monarquia e
a implantação da República a 5 de Outubro de 1910.
A 21 de Maio de 1908, quase 4
meses após o regicídio, o já então rei D. Manuel II, descreveu a forma como
viveu este trágico acontecimento, sob o título de "Notas absolutamente
íntimas", de que apresentamos o excerto que se segue
«Há já
uns poucos de dias que tinha a ideia de escrever para mim estas notas intimas,
desde o dia 1 de Fevereiro de 1908, dia do horroroso atentado no qual perdi
barbaramente assassinados o meu querido Pae e o meu querido Irmão. Isto que
aqui escrevo é ao correr da pena mas vou dizer franca e claramente e também sem
estilo tudo o que se passou. Talvez isto seja curioso para mim mesmo um dia se
Deus me der vida e saúde. Isto é uma declaração que faço a mim mesmo. Como isto
é uma historia intima do meu reinado vou inicia-la pelo horroroso e cruel
atentado.
No dia 1
de Fevereiro regressavam Suas Magestades El-Rei D. Carlos I a Rainha a senhora
D. Amélia e Sua Alteza o Principe Real de Villa Viçosa onde ainda tinha ficado.
Eu tinha vindo mais cedo (uns dias antes) por causa dos meus estudos de preparação
para a Escola Naval. Tinha ido passar dois a Villa Viçosa tinha regressado
novamente a Lisboa.
Na
capital estava tudo num estado excitação extraordinária: bem se viu aqui no dia
28 de Janeiro em que houve uma tentativa de revolução a qual não venceu. Nessa
tentativa estava implicada muita gente: foi depois dessa noite de 28, que o
Ministro da Justiça Teixeira d'Abreu levou a Villa Viçosa o famoso decreto que
foi publicado em 31 de Janeiro. Foi uma triste coincidência ter rubricado nesse
dia de aniversário da revolta do Porto. Meu Pae não tinha nenhuma vontade de
voltar para Lisboa. Bem lembro que se estava para voltar para Lisboa 15 dias
antes e que meu Pae quis ficar em Villa Viçosa: Minha Mãe pelo contrário queria
forçosamente vir. Recordo-me perfeitamente desta frase que me disse na vespera
ou no próprio dia que regressei a Lisboa depois de eu ter estado dois dias em
Villa Viçosa. "Só se eu quebrar uma perna é que não volto para Lisboa no
dia 1 de Fevereiro. Melhor teria sido que não tivessem voltado porque não tinha
eu perdido dois entes tão queridos e não me achava hoje Rei! Enfim, seja feita
a Vossa vontade Meu Deus!
Mas
voltando ao tal decreto de 31 de Janeiro. Já estavam presas diferentes pessoas
politicas importantes. António José d'Almeida, republicano e antigo deputado,
João Chagas, republicano, João Pinto dos Santos, dissidente e antigo deputado,
Visconde de Ribeira Brava e outros. Este António José d'Almeida é um dos mais
sérios republicanos e é um convicto, segundo dizem. João Pinto dos Santos, é
também um dos mais sérios do seu partido. O Visconde de Ribeira Brava, não
presta para muito e tinha sido preso com as armas na mão no dia 28 de Janeiro.
Mas o António José d'Almeida e João Pinto dos Santos não podiam ser julgados
senão pela Câmara como deputados da última Câmara. Ora creio que a tensão do
Governo era mandar alguns para Timor tirando assim por um decreto dictatorial
um dos mais importantes direitos dos deputados. O Conselheiro José Maria de
Alpoim par do Reino e chefe do partido dissidente tinha tido a sua casa cercada
pela policia mas depois tinha fugido para Espanha. Um outro dissidente também
tinha fugido para Espanha e lá andou disfarçado. Outro que tinha sido preso foi
o Afonso Costa: este é do pior do que existe não só em Portugal mas em todo
mundo; é medroso e covarde, mas inteligente e para chegar aos seus fins
qualquer pouca vergonha lhe é indiferente. Mas isto tudo é apenas para entrar
depois mais detalhadamente na história íntima do meu reinado.
Como
disse mais atrás eu estava em Lisboa quando foi 28 de Janeiro; houve uma pessoa
minha amiga (que se não me engano foi o meu professor Abel Fontoura da Costa)
que disse a um dos Ministros que eu gostava de saber um pouco o que se passava,
porque isto estava num tal estado de excitação. O João Franco escreveu-me então
uma carta que eu tenho a maior pena de ter rasgado, porque nessa carta dizia-me
que tudo estava sossegado e que não havia nada a recear! Que cegueira!
Mas
passemos agora ao fatal dia 1 de Fevereiro de 1908 sábado. De manhã tinha eu
tido o Marquês Leitão e o King. Almocei tranquilamente com o Visconde d'Asseca
e o Kerausch. Depois do almoço estive a tocar piano, muito contente porque
naquele dia dava-se pela primeira vez "Tristão e Ysolda" de Wagner em
S. Carlos. Na vespera tinha estado tocando a 4 mãos com o meu querido mestre
Alexandre Rey Colaço o Septuor de Beethoven, que era, e é uma das obras que
mais aprecio deste génio musical. Depois do almoço à hora habitual quer dizer
às 13:15h comecei a minha lição com o Fontoura da Costa, porque ele tinha
trocado as horas da lição com o Padre Fiadeiro. A hora do Fontoura era às
17:30h. acabei com o Fontoura às 15 horas e pouco depois recebi um telegrama da
minha adorada Mãe dizendo-me que tinha havido um descarrilamento na
Casa-Branca, mas não tinha acontecido nada, mas que vinham com três quartos de
hora de atraso. Vendo que nada tinha acontecido dei graças a Deus, mas nem me
passou pela mente, como se pode calcular o que havia de acontecer. Agora
pergunto-me eu aquele descarrilamento foi um simples acaso? Ou foi premeditado
para que houvesse um atraso e se chegasse mais tarde? Não sei. Hoje fiquei em
dúvida. Depois do horror que se passou fica-se duvidando de muita coisa. Um
pouco depois das 4 horas saí do Paço das Necessidades num "landau"
com o Visconde d'Asseca em direcção ao Terreiro do Paço para esperarmos Suas
Magestades e Alteza. Fomos pela Pampulha, Janelas Verdes, Aterro e Rua do
Arsenal. Chegámos ao Terreiro do Paço. Na estação estava muita gente da corte e
mesmo sem ser. Conversei primeiro com o Ministro da Guerra Vasconcellos Porto,
talvez o Ministro de quem eu mais gostava no Ministério do João Franco.
Disse-me que tudo estava bem.
Esperamos
muito tempo; finalmente chegou o barco em que vinham os meus Paes e o meu
Irmão. Abracei-os e viemos seguindo até a porta onde entramos para a carruagem
os quatro. No fundo a minha adorada Mãe dando a esquerda ao meu pobre Pae. O
meu chorado Irmão deante do meu Pae e eu deante da minha mãe. Sobretudo o que
agora vou escrever é que me custa mais: ao pensar no momento horroroso que
passei confundem-se-me as ideias. Que tarde e que noite mais atroz! Ninguem
n'este mundo pode calcular, não, sonhar o que foi.creio que só a minha pobre e
adorada Mãe e Eu podemos saber bem o que isto é! vou agora contar o que se
passou n'aquella historica Praça
Sahimos
da estação bastante devagar. Minha mãe vinha-me a contar como se tinha passado
o descarrilamento na Casa-Branca quando se ouvio o primeiro tiro no Terreiro do
Paço, mas que eu não ouvi: era sem duvida um signal: signal para começar
aquella monstrosidade infame, porque pode-se dizer e digo que foi o signal para
começar a batida. Foi a mesma coisa do que se faz n'uma batida às feras:
sabe-se que tem de passar por caminho certo: quando entra n'esse caminho dá-se
o signal e começa o fogo! Infames! Eu estava olhando para o lado da estatua de
D. José e vi um homem de barba preta , com um grande "gabão". Vi esse
homem abrir a capa e tirar uma carabina. Eu estava tão longe de pensar n'um horror
d'estes que me disse para mim mesmo, sabendo o estado exaltação em que isto
tudo estava "que má brincadeira". O homem sahiu do passeio e veio se
pôr atraz da carruagem e começou a fazer fogo.
Faço
aqui um pequeno desenho para mesmo me ajudar.
1) Estátua de D. José
2) Sítio onde estava o Buissa o homem das barbas
3) Lugar onde elle começou a fazer fogo
4) Sítio aproximadamente onde devia estar a carruagem Real
quando o homem começou a fazer fogo
5) Portão do Arsenal
6) Praça do Pelourinho
7) Sítio aproximadamente donde sahiu o tal Costa que matou o
meu Pae.
Quando vi o tal homem das barbas que tinha uma cara de meter
medo, apontar sobre a carruagem percebi bem, infelizmente o que era. Meu Deus
que horror. O que então se passou só Deus minha mãe e eu sabemos;(...).»
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